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6 de outubro de 2010

Os desafios do conhecimento coletivo e anônimo


Há vários anos, a nossa organização, uma cooperativa de trabalhadores na Costa Rica, vem trabalhando e buscando formas de explicitar o conhecimento coletivo e disponibilizá-lo a serviço da ação para a mudança social. Nós, as mulheres, pesquisamos, criamos metodologias e as colocamos em prática com grupos bem diversos em diferentes países da América Latina, com grupos que trazem os seus conhecimentos e experiências de vida para lhes dar forma e compartilhar.

As nossas diretrizes de trabalho incluem o uso das novas tecnologias para servirem de apoio a esses processos de construção coletiva e, dessa experiência, nós tivemos vários desafios que têm a ver com o conhecimento que não é de ninguém, mas que pertence a todos.

Em primeiro lugar, o conhecimento coletivo ocupa as nossas vidas cotidianas e é o que nos faz ser quem somos. É o conhecimento do qual não se pode definir uma autoria específica. Por exemplo, as receitas de culinária que são preparadas ou as formas como construímos as nossas casas são o resultado de misturas e contribuições de muitas pessoas, há muitos anos. Sendo assim, o conhecimento que as pessoas adquirem por experiências de vida e pelos anos de trabalho tem um grande valor, e nós estamos aprendendo a explicitar e compartilhar isso para colocar em prática, disseminar e dar outros sentidos.

Grande parte do conhecimento que fez com que avançássemos como cultura é, além disso, anônima: não é possível definir quem foi o autor das nossas histórias populares, dos ritmos tradicionais ou dos usos medicinais das plantas. Não podemos saber e possivelmente não queremos:
o anonimato nos permite, em certa medida, nos apropriarmos de forma coletiva desse conhecimento em forma “viral” e que vai sendo transformado, muitas vezes, sem preconceitos acerca da sua origem e das suas raízes que se perderam no tempo.Essa característica de anonimato também é essencial porque há momentos-chave nos quais o medo e a violência determinam qual conhecimento é o válido. Ao longo da História, inúmeros grupos de poder determinaram e regularam a informação, e o anonimato aparece nesses momentos para dar suporte à resistência, à mudança e à rebeldia das idéias.

Por outro lado, o anonimato também pode ser usado para alimentar más intenções e aumentar a desinformação. No entanto, quando são colocadas na balança entre as desvantagens e as vantagens sociais desta ferramenta, é possível ver como a necessidade de expressão sem preconceitos, a disseminação de conhecimento coletivo e a possibilidade de gerar um debate livre de idéias são muito boas razões para defender o tal anonimato.

As novas tecnologias nos possibilitaram capturar e compartilhar o conhecimento mais facilmente, e inclusive nos permitiu aumentar essa coletividade criativa, trazendo cada vez mais grupos, mais indivíduos de diferentes culturas para a mesa criadora de idéias. Mas essas possibilidades cada vez nos propõem mais desafios: a exclusão, a exploração, a violência, o crime e a injustiça não podem ser vistos como fenômenos sociais sem a relação com as tecnologias, e as tecnologias não podem ser consideradas neutras ou não-afetadas. Quando nós trabalhamos o assunto do conhecimento coletivo ligado às novas tecnologias, achamos muitos desafios. Um dos desafios é como proteger o caráter coletivo desse conhecimento. Outro desafio importante que estamos começando a experimentar é precisamente conservar a capacidade de produzir conhecimento anônimo.

Primeiramente, existe o problema da coletividade. Cada vez é mais evidente como, em nível global, os grupos de poder tentam generalizar formas de regular a propriedade do conhecimento, que são cada vez mais restritivas para a sua apropriação social e de transformação. Os modelos de propriedade intelectual que estão sendo globalizados são os mais restritivos, baseados em direitos autorais comerciais, mais do que em direitos culturais.

Sob estes modelos, é privilegiada a criação individual em relação à coletiva. Quase sempre se procura estabelecer uma autoria única, que garanta os direitos econômicos por cima dos direitos da coletividade em acessar o conhecimento compartilhado. Com períodos de copyright excessivos, por exemplo, são reduzidos o crescimento do domínio público e a circulação desse conhecimento.Depois, aparece o problema do anonimato. No fórum amplo das idéias que é a internet, poderia parecer que existe a possibilidade de inventar uma identidade separada da real, um ‘pseudoanonimato’, que nos permita localizar num espaço fora do alcance dos limites geográficos da censura e divulgar as idéias com baixo custo. De fato, milhares de pessoas vivem uma parte das suas vidas na internet escrevendo um blog, construindo um mundo no Second Life ou participando do chat ou numa comunidade virtual. O anonimato se usa para criar, discutir e trocar.

Por outra parte, outros grupos estão utilizando as mesmas tecnologias para identificar ameaças ao poder hegemônico e rastrear grupos e indivíduos na rede, identificar “ameaças” ou fazer investigações dos nossos hábitos e preferências em nome da segurança ou do mercado. Alguns, inclusive, utilizam o anonimato das novas tecnologias para cometer crimes, roubar identidades, obter segredos de empresas e de grupos e invadir a privacidade das pessoas.

Sendo esse um assunto tão vasto, o anonimato gerou respostas tecnológicas e respostas sociais muito diversas. Alguns optaram por buscar o fim do anonimato em nome da segurança através de leis e ferramentas informáticas. Outros geraram ferramentas e iniciativas legais que permitam gerenciar e regular as identidades on-line e a informação pessoal que se gera e se usa na rede. Outras iniciativas ainda preferem focar na forma em como as corporações e os governos estão utilizando o anonimato a seu favor. Para nós, este é um novo desafio que recém começamos a explorar, porque consideramos que o anonimato apresenta os seus problemas e as suas vantagens. Mas, por enquanto, ao colocar na balança, as vantagens continuam a ganhar. O espaço anônimo da internet é essencial para que ela continue sendo um espaço de criação coletiva e livre.

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