Fiz este artigo para o 1° Prêmio Letras de Jornalismo Cultural e Literário, do qual fui um dos 5 vencedores. Apesar de gostar bastante do resultado final, tinha pouca esperança de vencer pois comecei o texto quando faltavam 4 horas para o fim das inscrições e ainda dei uma paradinha para tocar um riff de guitarra que me veio à mente enquanto digitava, fiquei receoso.
A entrevista com o Guizado foi feita durante a participação dele no festival Eletronika, em 2008, quando o conheci e tive a oportunidade de bater um breve e interessante papo com ele, sujeito boníssimo e grande artista. A fala do pessoal do Constantina foi captada enquanto comíamos algumas pizzas no Pomodori, também em BH, na ocasião em que os conheci pessoalmente, em 2007. Aproveitei que ainda não havia utilizado esse material e o inseri no artigo abaixo, que também está impresso na nova e especial edição do jornal Letras, do Café Com Letras, distribuído gratuitamente em BH. Essa edição do jornal é focada no Savassi Festival, que começa nesta semana.
Feita a introdução, segue abaixo o artigo, "Mais do que palavras".
Música
política para Maradona cantar. Treinando pra ser chuva.
Receita de pudim de leite condensado. As frases que você acaba
de ler não são frutos de uma dislexia não
tratada, mas sim títulos de músicas de artistas da
efervescente cena instrumental brasileira. Apesar de uma visível
disparidade, todas têm em comum o fato de serem os únicos
pontos de indicação para possíveis
interpretações do ouvinte.
Dentro
de um ambiente tão abstrato quanto a música
instrumental, são poucas as “dicas” que direcionam o
ouvinte em um determinado rumo na construção de
sentido. Essa é uma das principais características da
música instrumental: a liberdade, tanto de quem a produz como
de quem a escuta. O que dizer, então, do jazz, marcado pela
improvisação e caminhos não-lineares?
“São
emoções, sensações, imagens mentais que
se transformam em música como forma de expressão.
Realmente, tem um forte caráter sinestésico”, me
responde o trumpetista paulista Guilherme Mendonça, mais
conhecido como Guizado, ao tentar explicar o processo de nomenclatura
de suas canções (no caso, da faixa intitulada
“Vermelho”). Utilizando o nome Guizado em seu projeto musical (no
qual, além do trumpete, também é responsável
pelas programações eletrônicas e sintetizadores),
Guilherme lançou, em 2008, o álbum Punx,
presença constante na lista de melhores lançamentos
daquele ano mesclando eletrônica de vanguarda, jazz e rock
experimental. Agora, acaba de lançar seu segundo trabalho,
Calavera,
liberado para download no projeto Álbum Virtual, da gravadora
Trama, que remunera os artistas para que disponibilizem suas músicas
gratuitamente ao público.
Em
Calavera,
Guizado não abriu mão das palavras e inseriu vocais em
algumas canções. O diferencial é que não
se tratam de letras que esclarecem, mas que criam novas
possibilidades de interpretação, além de
permitir que os vocais atuem como importantes instrumentos melódicos
responsáveis por novas camadas na diversificada massa sonora
do artista (que dessa vez inclui, além dos já citados
jazz, rock e eletrônica, ritmos como afrobeat, soul e até
frevo).
Tida
como uma das principais expoentes do pós-rock no Brasil, a
mítica e mutante banda belorizontina Constantina mantém
relação semelhante a de Guizado com suas obras. “(Nosso
trabalho) é apenas o ponto de partida, cada pessoa que ouve a
música constrói uma história própria”,
conta o guitarrista Bruno Nunes, que ao lado dos irmãos Daniel
e Leonardo, fundou o Constantina em 2003 junto de outros amigos.
Bruno, Daniel e o multiinstrumentista André Veloso, aliás,
são os únicos membros que se mantiveram em todas as
formações da banda, que já foi quarteto,
quinteto, sexteto e agora é um septeto, contando, pela
primeira vez, com trumpete e percussão como elementos
constantes em suas obras.
Apesar
de criar títulos inspirados para suas melancólicas e
detalhadas canções instrumentais, como “Treinando pra
ser chuva” e “Ela já atravessou todos os oceanos do
mundo”, a banda às vezes opta por sequer nomear suas
músicas. A pessoa que se arrisca a entrar em contato com essas
obras é apresentada sem instruções ou
introduções diretamente a um material altamente
inspirado e que dependerá do próprio ouvinte e suas
referências, gostos e, porque não, estado de espírito,
para se transformar mentalmente em uma experiência única.
Da
mesma forma age o multiinstrumentista paulista Maurício
Takara, que responde por M. Takara em seu projeto solo e é
baterista das bandas Hurtmold e São Paulo Underground, nomes
cruciais da música experimental/instrumental brasileira. Assim
como Takara, músicos e grupos instrumentais contemporâneos
como Ruído/mm (de Curitiba/PR), Burro Morto (de João
Pessoa/PB), A Banda de Joseph Tourton (de Recife/PE), Fóssil
(de Fortaleza/Ceará), 4instrumental (Sabará/MG),
Iconili (BH/MG) e Macaco Bong (Cuiabá/MT), atuantes na chamada
“cena musical independente”, têm em comum o desejo pela
experimentação, pela extrapolação de
limites entre orgânico e eletrônico e pela influência
jazzística que, se em alguns momentos não é
manifestada sonoramente, permanece nas intricadas estruturas de
composição e na liberdade de execução de
suas obras.
O
que tem se percebido ao longo dos últimos anos é a
consolidação e ampliação de uma cena
instrumental formada essencialmente por jovens músicos
influenciados por diferentes estilos e que optaram por se expressar
além das palavras. É interessante perceber que na
década de 90 a grande maioria das bandas alternativas
brasileiras compunha em inglês, consequência das bandas
estrangeiras que as influenciavam, uma língua não
dominada pela população brasileira. Nos anos 2000,
tendo como marco histórico o lançamento do álbum
O
Bloco do Eu Sozinho,
do Los Hermanos (um dos primeiros CDs a romper com as barreiras entre
indie e mainstream no Brasil e permitir que seus autores seguissem
uma carreira de sucesso, respeitada tanto pela crítica como
pelo público), uma nova safra de bandas cantando em português
surgiu, resultando em boas propostas como as dos pernambucanos do
Mombojó, dos gaúchos da Bidê ou Balde e dos
mineiros Monno e Transmissor. Em 20 anos, o inglês perdeu sua
hegemonia na música independente, composições de
bandas alternativas em português passaram a ganhar maior
destaque e agora, pela primeira vez na história, jovens bandas
instrumentais com forte ligação com o rock formam um
grupo sólido, de qualidade estética e conceitual,
expressando-se com todas as suas idiossincrasias e fazendo uso de uma
linguagem universal: a música.
Olhos
e ouvidos mais atentos já perceberam isso, não apenas
no Brasil como também no exterior. A banda cuiabana Macaco
Bong já se apresentou em importantes festivais no Canadá
e na Espanha, ao lado de artistas renomados internacionalmente;
Maurício Takara se apresentou no hypado festival
norte-americano SXSW - South by Southwest; A Banda de Joseph Tourton
teve uma de suas músicas utilizada em uma campanha
publicitária internacional (em um momento em que todas as
músicas da banda haviam sido gravadas em um quarto, com um
único microfone!); selos internacionais se interessam cada vez
mais por esses grupos... são vários os indícios
de que este, realmente, é um momento especial para a música
instrumental nacional.
O
caso de Thomas Liech, do blog alemão blogpartei.de, é
elucidativo. Nascido no Brasil e criado na Alemanha, toda a produção
cultural brasileira com a qual Thomas tem contato, com exceção
de Cidade de Deus e Cansei de Ser Sexy, é antiga. Não
há presença das manifestações artísticas
brasileiras contemporâneas em sua vida. Essa situação
se alterou justamente através de novas bandas instrumentais
brasileiras (no caso, Constantina, Guizado, Macaco Bong e Hurtmold)
que ele conheceu pela internet e cuja identificação foi
instantânea. São bandas de diferentes Estados
brasileiros e que, sem recorrer a cacoetes regionalistas ou sequer ao
idioma, tiveram o poder de fazer com que Thomas se sentisse mais
próximo do Brasil do que nunca.
Para
entender (parte d´) o atual momento da música
independente instrumental brasileira e seus novos artistas, escute:
Mestro
(2006),
do Hurtmold
Artista
Igual Pedreiro (2008),
do Macaco Bong
Calavera
(2010) e Punx
(2008), de Guizado
¡Hola
amigos...! (2008),
do Constantina
Varadouro
(2008),
do Burro Morto
Praia
(2008),
do Ruído/mm
Foto 1: Guizado em foto de minha autoria / Foto 2: M. Takara 3 por Caroline Bittencourt