A música alternativa brasileira pode ser dividida em duas grandes fases: antes e depois da U.D.R. Calma, calma. Antes de interromper a leitura e continuar sua busca na internet por pornografia gratuita e mentiras reconfortantes, pense em quais bandas podem ser diretamente ligadas à criação de um novo estilo musical.
Eu poderia usar onomatopéias como “tic” e “tac” para simular a passagem de tempo enquanto você pensa e uma verdadeira tempestade elétrica acontece nisso em que você chama de cérebro, mas seria uma grande mentira, já que quase nenhum relógio atual continua fazendo esses sons e o próprio uso desses acessórios vem diminuindo, sendo substituídos pelos celulares que, entre suas atuais 46 funções padrão, também informam as horas, veja só! “Nosfa!”.
Pois bem. Aos nomes que possam ter surgido em resposta à pergunta proposta, como The Stooges e Black Sabbath, adicione mais três letras: U-D-R. Porém, esta dupla mineira foi além. Não criaram apenas um estilo, mas dois: o funk escatológico satânico e o rock n' roll anti-cósmico da morte. Se o primeiro é uma legítima manifestação da ironia levada ao extremo, uma sarcástica resposta ao controle e ao poder da Igreja Católica no Brasil e sua suposta assepsia, influenciando diretamente nomes como Cansei de Ser Sexy (como a própria vocalista Lovefoxxx já declarou) e Bonde do Rolê, o segundo estilo é mais uma grande piada, mas nem por isso menos original.
Ao apropriar-se dos cacoetes e clichês oriundos do funk, rap, metal, rock e até mesmo tendo como influência os estilos de vida dos playboys e patricinhas, a U.D.R faz poderosas críticas sociais, até mesmo sem querer, disfarçadas sob ideais hedonistas e uma falsa alienação. Não é apenas um dedo na ferida exposta, mas uma mão inteira, em uma autêntico fist fucking sem lubrificantes para os ouvidos.
Ter sua própria obra fora de seu controle é comum às grandes bandas e é isso o que encontramos na U.D.R. Por mais que MC Carvão e Professor Aquaplay soem extremamente honestos ao comporem suas rimas com termos do cinema pornô hardcore e de práticas do submundo homossexual, suas letras também refletem as transformações ocorridas na cultura e na sociedade brasileira desde meados da década de 90.
A religião é um dos temas preferidos destes nerds que, munidos de alguns poucos softwares pirateados, utilizam a fúria gerada nos seguidores de Jesus como combustível. Afinal, o que esperar de canções intituladas “Bonde da Mutilação” e “Dança do Pentagrama Invertido” e letras como “É isso menininha / Jesus pode te amar mas só a U.D.R te quer / fogo do capeta / brasa na calcinha / deformo sua buceta e arrombo a sua bundinha”, do refrão da incrível “Gigolô Autodidata”?
Outro elemento que reforça a importância da U.D.R no cenário musical brasileiro é que ela é uma das primeiras da geração de bandas que se tornaram conhecidas através da internet e que utilizam esquemas de produção caseira. Em suas próprias casa, plugando microfones aos Pcs e utilizando programas de produção musical crackeados, gastos com estúdio e instrumentos são eliminados, permitindo que a capacidade criativa não seja reprimida e limitada por questões monetárias.
Circulando entre as cenas metal, indie e eletrônica com naturalidade, canções como “Dança do Pentagrama Invertido” e “Bonde da Orgia de Travecos”, dois dos hits alternativos da dupla, são entoadas tanto por headbangers com suas camisas do Venom como por indies de óculos de armação grossa e piranhas electro de shortinho. Grupos que se unem pela atração ao bizarro, o hedonismo inconsequente, a crueza, a busca pela liberdade e a diversão de não se ter limites ao menos por um momento.
Desde 2003 Aquaplay e Carvão são os pastores do demônio organizando sessões de descarrego em clubes sujos do sudeste brasileiro, lembrando as pessoas que existe vida além das atuações às quais nos entregamos diariamente e, mais importante, reavivando em nossas mentes o quanto a vida pode ser divertida. Basta não levá-la a sério todo o tempo.
Em entrevista por email, Professor Aquaplay (à direita, de branco), comenta o início da banda, momentos singulares de alguns shows e seus planos nefastos.
Quando foi formada a U.D.R e quais eram seus integrantes na época? Qual a formação atual?
A banda foi formada em 2003. Éramos eu, MS Barney e MC Carvão. Montamos a banda depois que eu e um outro amigo tocarmos ao vivo com a extinta dupla "MC Abutre e MC Carniça". Daí o MC Carniça saiu e entraram o Barney e o Carvão. O Barney saiu em outubro de 2005 e agora somos só eu e o Carvão.
Qual a origem e significado do nome "U.D.R"?
Eu ia dizer que significa "Udora" sem as vogais, mas ninguém pescou essa piada ainda. A idéia era usar uma sigla baseada em algo que remetesse a puritanismo e conservadorismo extremos. De início, a intenção era usar "TFP", por causa daquele movimento "Trabalho, Família e Propriedade" ou coisa que o valha. Mas daí o Barney teve a idéia de usar "UDR" por causa da União Democrática Ruralista, um partido extremamente conservador. Gostamos da idéia e topamos. De qualquer maneira, o nome da banda não tem necessariamente o mesmo significado da sigla de onde o tiramos. É só uma sigla.
Qual a tiragem de cada um dos cds da banda? Algumas pessoas afirmam que eles nem sequer existem, devido a dificuldade em se achar algum cd da UDR.
Tiramos 50 cópias do Seringas Compartilhadas Vol.2, nosso primeiro e único cd até então. A idéia era pegar uns e levar para nosso primeiro show em São Paulo. Fizemos uma divulgação boa e nego só queria o disco de presente. Desembolsar 7 mangos que é bom, nem pensar. Alguns compraram por encomenda e o disco foi - em doses homeopáticas - pra tudo quanto é canto do Brasil. O resto ficou encalhado um tempão até acabar, daí broxamos para fazer uma segunda prensagem, imaginando que daria no mesmo. Agora é só lamento, o Seringas... acabou pra valer. A moçada vai ter que ficar esperta e esperar até rolar tiragem do próximo disco, que estamos terminando. Deve sair um número mais generoso de cópias, tipo 100. Nem a pau que vamos fazer prensagem super profissional de 2 mil exemplares pra ficar com 1200 encalhados.
Levando-se em consideração a questão anterior, a U.D.R pode ser considerada a típica banda da geração mp3?
Partindo do princípio que só somos conhecidos assim por causa de meia dúzia de MP3 soltos na internet, acho que sim.
No maior país católico do mundo e com a enorme proliferação das igrejas evangélicas na última década, é de se esperar que uma banda que canta sobre satanás, orgias de travestis e pessoas comendo fezes não seja muito bem aceita. Vocês já tiveram problemas com algum grupo religioso ou com a mídia?
Esse lance de aceitação é bem o contrário, somos até bem queridos e os últimos shows fora de BH foram excelentes. Acho que teríamos público bom em outras cidades, pelo que dá pra notar por aí... parece que estão percebendo, aos poucos, que são só piadas. Feias, mas, ainda assim, piadas.
Quanto a "problemas", só tivemos dois. Ambos em BH. O primeiro foi quando um sujeito desavisado adentrou o recinto justo num show em que "crucificamos" um cara que se voluntariou para tal. O tal desavisado quis "protestar" por causa disso e ficou avacalhando a performance. Me matou de raiva na hora. Parei o show, dei chilique e tudo mais, mas quem teve de sair de fininho foi ele porque só tinha fã da banda no lugar. Noutra, foi abrindo o show do Massacration. Não é como se já não esperássemos por uma reação negativa, afinal eram quase 2 mil pessoas que pagaram 25 reais pra ver o Massacration.
Vocês conseguem ganhar algum dinheiro com a U.D.R ou é apenas por diversão?
Vez ou outra, rolam uns trocados, mixaria mesmo, mal paga ônibus e uma cervejinha. Mas nem importa, enfim... querer viver de banda é coisa de gente que não trabalha.
Ao ouvir as músicas do primeiro álbum, Seringas Compartilhadas..., a impressão que fica é a de que vocês fizeram todas as bases no computador. Isso procede? No segundo álbum o processo foi o mesmo?
Lógico, ora. De que outra forma a gente gravaria a bateria eletrônica? De toda forma, na segunda leva de gravações, temos uns sons com instrumentos reais (vide "Gigolô Autodidata", "Punkristão", "Oh Mefisto", "O Leão de Judá Não Mente Jamais"). O resto é computador.
Como surgiu a oportunidade de tocar em São Paulo pela primeira vez? Quais os lugares em que já tocaram fora de Belo Horizonte?
Um amigo nosso daqui levou um cd para Sampa e mostrou para um pessoal que faz a organização do Kool Metal Fest, um festival semestral que já tem certo prestígio por lá. Eles ouviram despretensiosamente e acharam bem legal. Quando vieram para BH, assistiram a um show nosso. Acharam que seria interessante e acabamos convidados para a terceira edição - considerada uma das piores. Um ano depois, tocamos na sexta edição - considerada uma das melhores. Nos redimimos.
O fato de serem membros da U.D.R já atrapalhou algum de vocês profissionalmente?
Na verdade, não. Nem tem por que atrapalhar.
Como suas famílias encaram a U.D.R?
Aqui em casa é tudo tranqüilo em relação a isso. Inclusive, minha mãe e minha irmã adoram o "Bonde da Orgia de Travecos" e até têm a música como toque de celular. Quando botamos religião no assunto, ouvimos uns "Isso é pesado demais, hein?". Mas, num âmbito geral, as duas famílias levam numa boa. Acham até legal o fato da gente realmente tocar fora e ter fãs.
Vocês conhecem o Creative Commons? Registram suas músicas?
Não conheço o Creative Commons. Quanto ao registro... por enquanto, a gente é protegido pela lei de direito intelectual, que garante nossa autoria incondicional. O fato da banda ter certo reconhecimento é bem crucial também. Registrar é um plano futuro que envolve tirar carteira e lidar com o ECAD e a Ordem dos Músicos. Tudo isso pra poder tirar um lucro mixuruca caso um dia a gente toque em rádio, o que acho bem improvável. Então não é tão necessário.
Conte um pouco sobre o episódio do sujeito "crucificado". Quando foi, local, etc.
Foi no Matriz. Se não estou enganado, foi em julho de 2004. Ou setembro, não sei. Eu estava em um bar com uns amigos e algumas pessoas que eu desconhecia. Tivemos a idéia de fazer um show em homenagem à estréia d'A Paixão de Cristo. Daí tive a idéia de crucificar alguém. Pedi a um amigo e ele topou, mas a esposa dele vetou. Daí esse amigo meu lançou "alguém quer ser crucificado no show da U.D.R?". Uns três sujeitos se prontificaram. Fizemos uma cruz de papelão e demos uma entrada gratuita pro primeiro que disse "eu!". Foi um dos shows mais "bad vibe". A introdução foi bem sombria, a platéia ficou bem encabulada com nosso novo amiguinho na cruz. O figurino era bastante pastelão, mas bem menos do que o habitual. Fizemos até covers de Rammstein e Atari Teenage Riot.
Eis que um sujeito desavisado adentra o local e chega à frente do palco. Ficou injuriado por termos um sujeito crucificado com "UDR" escrito no peito e começou a cuspir na gente. Num determinado momento, jogou uma garrafa d'água. Depois subiu no palco e jogou água na minha cara. Foi aí que dei o chilique citado anteriormente. O dono do Matriz sugeriu a ele que ele fosse embora, porque quando todos perceberam que não era uma das nossas estratégias imbecis de show, a galera ficou bem injuriada com ele. O cara saiu de fininho e eu voltei ao palco.
É verdade que já fizeram um show com fantoches, no qual vocês não apareciam?
Sim. Foi um dos melhores shows, inclusive. Foi o infame "Teatro Lusitano de Meias". Cantamos boa parte das músicas com sotaque e gírias portuguesas. As meias eram decoradas. A minha namorada, Mariana, que fez alguns shows cantando o "Bonde do Amor Incondicional", tinha uma meia com cabelo e maquiagem. Num determinado momento, a platéia se amontoou tanto na frente do palco para tentar ver o show (já que estávamos sentados atrás de uma "bancada" de papelão) que começaram a gritar "levanta! levanta!". Acabamos levantando, jogamos o papelão no meio da platéia e todos ficaram bem empolgados.
Foi realmente um ótimo show. Acho até que foi o mesmo show que teve o "Desafio do Funk", no qual fizemos um concurso de Break Dancing no qual um concorrente que não participava ganhou. Inclusive, o ganhador foi o mesmo amigo meu que perguntou "quem quer ser crucificado?" pra um monte de desconhecidos na mesa do bar. Ele detonou com as habilidades malucas de dança dele.
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Fotos ao vivo: Marcelo A. Santiago
Foto no bar: Mariana Machado
Foto no bar: Mariana Machado