Neofilia é a atração que sentimos pelo novo, pelo desconhecido. É relacionado ao instinto e, muito tempo atrás, uma questão de sobrevivência, pois era essencial na busca por novos alimentos na natureza e locais que apresentassem melhores condições de sobrevivência. É algo que permeia toda a nossa vida e, segundo alguns autores, ligado também à atração por parceiros sexuais diferentes. E, claro, algo muito utilizado no sistema capitalista para estimular o consumo. Imprensa musical e indústria fonográfica cresceram criando hypes constantes e lucrando a partir disso. É preciso criar novidades para vender cada vez mais. Construir ídolos que estimulem a curiosidade dos consumidores.
Décadas atrás, época em que a distribuição musical era mais difícil, era normal visualizar o consumidor em dois extremos: o de receptor de novidades via canais de marketing da indústria e mídias (rádio, tv, jornalismo musical, anúncios) ou de consumidor de obras já estabelecidas e que se enquadravam nos esquemas de distribuição da época. Ao acessar vários sites/blogs em busca de listas e pesquisar seus acervos, é triste perceber como a grande maioria está pautada somente nos lançamentos. A novidade como um valor em si, mais importante do que a análise de determinada obra. Solte três parágrafos clichês e um vídeo e parta pra próxima publicação. Queremos novidade. O artista que não tem seu trabalho publicado nesses sites nos meses seguintes ao lançamento vê sua obra se afundar num fosso digital. Em termos de visibilidade nos veículos online, depois da virada do ano as chances de destaque de um lançamento do ano que termina são mínimas. Parte-se para a criação de mais novidades. E assim caminha a indústria, com incontáveis obras interessantes se perdendo nesse processo. Nesse sistema, às vezes os próprios artistas sentem-se desestimulados em continuar a divulgação de um trabalho "ultrapassado", mesmo que lançado há alguns meses, e entram no processo de criação de novas obras que atendam ao mercado sedento por lançamentos de vida curta.
A ironia é que nunca antes na história deste país (e do mundo) foi tão fácil ter acesso à música, seja ela contemporânea ou de outras épocas. Em 2016, percebi a grande dificuldade que tive em fazer minha lista de melhores discos do ano (coisa que odeio) simplesmente porque não sabia em que ano os discos que mais ouvi em 2015 foram lançados. Só aí percebi que não me pautava pelo novo (ui, diferentão), mas de acordo com o tipo de som que queria ouvir ou pelas indicações apresentadas diariamente pelos sistemas de recomendação do Spotify ou do Deezer (uma das principais formas de descobrir novos artistas, pra mim, é olhar os "artistas relacionados" ou pesquisar playlists de países, cidades ou subgêneros específicos).
Esse é um dos problemas das listas de melhores do ano. Elas fazem um recorte limitado da criação dentro de determinado período e é essencial ter isso em mente. Uma lista de melhores do ano, por si só, diz mais sobre quem a criou do que sobre os períodos, objetos e contextos retratados. É baseada nas experiências e limitações de seu(s) autor(es). Uma lista é influenciada pela situação econômica, gênero e raça de quem a cria. No fim, as listas que pautam o cenário musical brasileiro são basicamente criações de homens brancos de classe média/alta do sudeste. Em um mundo de enorme volume de informações e novidades constantes, a hipervalorização das listas cria a sensação de que toda a produção não selecionada para essas listas está jogada ao marasmo.
Qual o tempo de vida de um disco? Depois dos primeiros meses seguintes ao lançamento, uma última chance de espaço na mídia é figurar em uma lista de melhores do ano. Passado o reveillon, é quase como se a vida útil daquela obra estivesse próxima do fim (em termos de espaço de divulgação). Não só entre jornalistas, mas também entre produtores de shows e festivais. "Seu disco tem mais de um ano? Precisa de algo novo pra tocar". Isso faria sentido no caso de um artista que já tocou em determinado festival ou cidade. Para aqueles ainda inéditos nesses cenários, não há o menor sentido nessa exigência senão a simples reprodução da lógica comercial do mercado mainstream.
Um experimento interessante é a Lista das listas, iniciativa do Pena Schmidt junto a parceiros como o Elson, da Sinewave (selo e grupo no Facebook), e o Rafael, do site Hits Perdidos. São analisadas dezenas de listas e contabilizadas as indicações para se identificar os artistas mais recorrentes. Ao menos, capta parte do que foi a visão da "crítica especializada" (e um pouco além) sobre a música brasileira em certo ano (a ideia de zeitgeist cabe aqui). Um (enorme) ponto negativo, no entanto, é a credibilidade dessas listas. Em 2018, por exemplo, a Lista das listas foi construída a partir de 183 listas de melhores do ano, mas não há uma publicação identificando quais são elas. Apesar da importância em se ter uma amostra ampla, há o risco de se basear em listas amadoras de pouca relevância, criadas por pessoas sobre as quais não sabemos nada (o que ouviram, o que assistiram ao vivo naquele ano? Como confiar na opinião de alguém que ouvir apenas 20 discos e colocou todos eles na sua lista de melhores?). Outro ponto questionável: em 2017 identificaram as 44 listas com mais de 10 "acertos" entre os 51 artistas mais citados. É complicado. Na busca por mais acessos, os sites foram crescendo cada vez mais suas listas de melhores. Se antes era normal termos 10 ou 20 melhores, agora não é raro listas de 100 nomes. Isso acontece porque os autores sabem que todos os artistas indicados divulgarão suas presenças nessas listas e, com isso, seus sites terão mais audiência. É bem pouco provável que todas essas pessoas tenham escutado com atenção mais de 100 álbuns brasileiros lançados ao longo do ano corrente em que a lista é feita. O que sinto acontecer, de fato, é que listas de veículos mais relevantes pautam as demais listas. Dessa forma, os 10 ou 20 primeiros colocados seriam as efetivas escolhas, os discos que mais tocaram o autor da lista, enquanto nas demais colocações estariam os artistas cuja principal função é completar a lista. Nomes "obrigatórios" que às vezes mal foram ouvidos, mas estão presentes em outras listas e são reproduzidos. Por isso considero importante conhecer quem faz cada lista, ler o que escreveu sobre cada um daqueles álbuns. De outra forma, é difícil ter credibilidade ou confiar que a pessoa sequer realmente ouviu todos aqueles discos. Mas, deixo claro, digo a partir somente da minha experiência pessoal.
Resumindo, o que quero ressaltar é a importância da visão crítica em relação às listas, considerando os elementos que indiquei, e de se incluir outros critérios de influência ao definir programações de shows e festivais.