Entre 2006 e 2007, trabalhei como redator no Cinema em Cena. No meio de 2007, pouco antes de me desligar do site, escrevi o piloto de uma coluna que começaria por lá, sobre assuntos relacionados ao YouTube. Com o recente anúncio do fim do Cinema em Cena (que será tratado em outro texto por aqui), achei válido resgatar esse texto, sobre a banda norueguesa Hurra Torpedo e sua trajetória na internet.
Hoje em dia eu escreveria o texto de outra forma, mas segue abaixo sua versão original, apenas com alguns links atualizados (os antigos deixaram de funcionar).
Imagine uma banda na qual os integrantes, em vez dos tradicionais guitarra e baixo, também usam freezers, fogões, panelas e demais utensílios de cozinha e se auto-denominam "a única banda de rock de cozinha do mundo". Agora faça um esforço e tente imaginar um documentário sobre uma turnê dessa mesma banda. Conseguiu? Não precisa queimar seus neurônios, pois tudo isso é realidade. A banda se chama Hurra Torpedo, é norueguesa, tem três integrantes e o documentário se chama The Crushing Blow – a rockumentary.
Em 1995, o Hurra Torpedo apresentou-se em um programa da TV norueguesa chamado Lille lørdag, no qual tocaram uma cover de "Total Eclipse Of The Heart", hit meloso de Bonnie Tyler, com um dos integrantes tocando guitarra e cantando, outro fazendo percussão na tampa de um freezer e esmurrando um fogão e um terceiro integrante destruindo outro fogão com um pesado pedaço de metal. Dez anos depois, essa apresentação na TV foi digitalizada e se tornou fenômeno na internet, tornando a banda famosa entre nerds de todo o mundo.
Tudo bem. Até aí a história é interessante, mas a partir do próximo parágrafo se tornará, digamos, absurda.
No fim de 2005, o Hurra Torpedo viajou para os Estados Unidos para fazer sua primeira turnê americana, cruzando o país de costa a costa. Uma fã, munida de sua câmera digital e acompanhada por um amigo, resolveu seguir a banda durante toda a turnê e fazer o documentário The Crushing Blow. Da chegada a América aos shows, bastidores, visitas a lojas de eletrodomésticos e passeios pelo país, tudo é registrado pela câmera, resultando em hilárias sequências. É como se Beavis e Butt-Head fossem considerados gênios da música contemporânea por quebrarem eletrodomésticos no palco.
Diversos trechos do documentário se espalharam pela internet em sites e blogs. Um trecho que mostra a banda se apresentando em uma festa de aniversário de uma criança foi visto mais de 500 mil vezes no site iFilm, chegando a ser o vídeo mais assistido do site. Atualização: o iFilm não existe mais. O vídeo citado pode ser assistido no Youtube.
Mas na realidade... era tudo falso! A banda realmente existe, mas todo o documentário era parte de uma campanha de marketing viral realizada pela Ford para divulgar o carro Fusion (utilizado pela banda para cruzar os Estados Unidos durante a turnê). A "fã" era na verdade uma atriz e a banda seguia um roteiro frente às câmeras.
Enquanto a campanha promocional do carro estava em atividade, um site chamado thecrushingblow.tv estava no ar disponibilizando todo o mockumentary (variação de "documentary", usada para designar documentários ficcionais) para download, acompanhado de uma mensagem pedindo para que os usuários clicassem nos links da Ford para ajudar o site a se manter no ar, pois a montadora era sua patrocinadora. O Ford Fusion utilizado pela banda durante a turnê também estava sendo sorteado no site.
Passado o período da campanha promocional o site saiu do ar.
Após divulgada a verdade em torno de The Crushing Blow, o Hurra Torpedo deixou de ser conhecido apenas por nerds e tornou-se conhecido mundialmente, apresentando-se em vários países. Inclusive, realizaram outra turnê nos Estados Unidos, desta vez, real.
Ao observarmos casos como o do Hurra Torpedo e outros recentes, como o da famosa Lonelygirl15, do YouTube, e o fenômeno Borat, fica claro que a indústria também já está se adaptando ao webvideo, utilizando a vontade do público em ver pessoas “normais” na tela como forma de lucrar. Um vídeo pode ser bom, mas ao ser vendido como “real”, ele se torna incrível.
O Brasil também não fica fora dessa. Recentemente, para divulgar o lançamento do CD da banda carioca Moptop, da gravadora Universal, foi feito um falso making of das gravações do álbum, no qual os integrantes fingiam não saber tocar seus instrumentos direito e simulavam discussões entre si e com o produtor.
Indiferentes aos questionamentos em relação à convivência entre ficção e realidade na internet e seu uso comercial, Egil Hegerberg, Kristopher Schau e Aslag Guttormsgaard, os integrantes do Hurra Torpedo, querem mais é aproveitar o sucesso obtido graças aos seus vídeos na internet e mandam um aviso através da sua página no MySpace: "Mothers, Hide Your Kitchens!" ("Mães, escondam suas cozinhas").
Confira abaixo a entrevista realizada com Egil Hegerberg, vocalista e guitarrista da banda.
Como vocês descreveriam a diferença na vida de vocês, antes e depois do vídeo de “Total Eclipse of the Heart” se tornar um fenômeno na internet?
Egil: Agora nós não somos conhecidos apenas na Noruega, mas no mundo todo. E como nós passamos a fazer muito mais shows, nós estamos tocando melhor e nosso show melhorou. Está muito melhor do que antes. Nós também tivemos a oportunidade de finalmente gravar o nosso álbum, o que é ótimo.
Vocês sabem quem colocou o vídeo da banda tocando “Total Eclipse of the Heart” pela primeira vez na internet?
Não fazemos idéia.
Como se deu a conexão entre a Ford e o Hurra Torpedo?
Alguém da agência de publicidade da Ford viu o vídeo de “Total Eclipse...” na internet e quis fazer alguma coisa com a gente. Foi meio esquisito. Quando eles entraram em contato com a gente nós tínhamos certeza de que era alguma brincadeira, mas aparentemente não era.
Há muita polêmica em torno de The Crushing Blow. A grande maioria das pessoas acreditou que se tratava de um documentário real e algumas ficaram enfurecidas ao descobrirem que era parte de uma campanha da Ford. O que vocês têm a dizer para as pessoas que dizem que The Crushing Blow não passa de um comercial extendido?
Eu diria que elas estão totalmente corretas.
Havia um roteiro a ser seguido? Quanto do que nós vemos é real?
Nós fizemos uma turnê de um mês pelos Estados Unidos. Haviam algumas idéias anotadas, alguns lugares que tínhamos que visitar e alguns shows marcados. Então nós pegamos a estrada e vimos o que poderia acontecer. Algumas coisas que você vê são roteirizadas, outras foram improvisadas e outras são reais.
Existe alguma chance deThe Crushing Blow ser lançado em DVD?
Ele estava em um DVD encartado na revista Paste Magazine, em abril, eu acho. Nós filmamos muita coisa que não foi utilizada nos episódios divulgados na internet. Alguma coisa foi falada sobre juntar tudo em um longa metragem ou em uma série de TV, mas ainda é muito cedo para falar disso. Pessoalmente, acho que nada disto nunca vai acontecer, mas espero estar errado.
Vocês foram pagos ou a Ford apenas os ajudou na turnê?
Nós fomos pagos. É por isto que a Ford está com problemas financeiros atualmente.
O que vocês conhecem sobre a música e cinema brasileiros? Alguma turnê sul-americana planejada?
Nós não temos planos de fazer nenhuma turnê mundo afora pelos próximos meses, mas veremos o que o próximo ano tem a nos oferecer. Adoraríamos tocar no Brasil. Eu estive em Natal por algumas semanas há 7 anos e amei. É um lugar muito bonito e eu adorei as pessoas de lá.
Nós não conhecemos muito sobre o cinema e a música do Brasil na Noruega. As únicas coisas nas quais consigo pensar são Sepultura, Seu Jorge e Cidade de Deus.
Atualização bônus:
Hurra Torpedo tocando "Where is my mind?", do Pixies