Pesquisar nos arquivos

24 de março de 2012

Jair Naves - Araguari

Como eu me defendo desse sentimento de inadequação 
Que me destrói por dentro, pro qual eu não vejo explicação?

Algumas obras demandam tempo para serem exploradas e absorvidas. Araguari, estreia solo de Jair Naves, tem apenas quatro músicas, 20 minutos, mas se enquadra nessa categoria. Com o passar do tempo, é como se as canções de Jair criassem raízes que crescem e se tornam visíveis em um processo de beleza e dor. Diferentemente da época de seu lançamento, quando o fantasma do Ludovic tornava turva a visão do trabalho solo de Jair, o tempo contribuiu para diminuir imagens pré-concebidas e saudosistas.

Bandeira a meio mastro, um afago áspero, a voz do cantor
Eu criei um certo faro para esse tipo de enganador

Nos primeiros instantes de "Araguari I (meus amores inconfessos" a lógica do EP é exposta: o dedilhado na guitarra é uma breve e suave introdução imersiva, na sequência tomada pelo baixo vívido e a batida do bumbo como um soco. Cada trecho calmo, cada belo acorde, são carregados de uma fragilidade exposta com vigor em uma mistura de sofrimento e libertação.

Ladeira abaixo, assim foi dito
uma obra-prima de eufemismo
para as dores da inaptidão,
para o sufocante calor da afobação



Não importa o quão autobiográficas ou não são as letras, Jair cria/conta histórias/estórias sobre arrependimentos, descobertas, busca pelo autoconhecimento, amor... temas presentes em momentos de tristeza e felicidade reforçados em períodos específicos da vida, como a adolescência e o início da vida adulta. Não por acaso, as duas partes de "Araguari" ("meus amores inconfessos" e "meus dias de vândalo"), que abrem e fecham o EP, abordam tal momento.

Ninguém imagina o que eu enfrentei
o quanto doeu, o quanto eu rezei
minha reza de ateu
num desespero que eu nunca me atrevo a demonstrar

O amor é tema da melancólica e lamentosa "Silenciosa" e da (mais animada do EP) "De branquidão hospitalar". A dualidade do sentimento é expressa nas letras e nas músicas: a primeira, minimalista e devagar, é uma crônica do amor acabado, da falta de esperança; a segunda, pós-punk enérgico sobre um amor difícil de se explicar e a expectativa criada pela paixão.

Agora, convenhamos: eu nunca me expus tanto, você nem pra impedir
Com todo esse alvoroço, eu só engoli meu almoço, não senti gosto algum
A torneira que eu esqueci aberta não tardou a inundar todo o prédio
mas eu sobrevivi, eu sobrevivi

Em "Araguari II (meus dias de vândalo)", última faixa, a carga emocional aflora carregada pelas (muitas) nuances da música. É o tipo de letra que emocionaria por si só, mas que, musicada, penetra na alma. Sua tensão é instável e a única certeza é a de que algo muito profundo a acompanha, uma confissão de uma tragédia íntima sobre a qual se tem noção, mas não o controle. Como a vida.

Nem queira saber o que eu ambiciono,
o que me mantém vivo, porque eu não cedo ao sono
Eu te aconselho: nem queira saber

Assim que os meus dias de vândalo terminarem,
eu sei que me levarão pro céu
E farão com que eu narre os meus escândalos
sem que eu me gabe,
com o constrangimento abatido de um réu
Talvez fosse preferível
que eu nunca tivesse saído
de onde eu nasci,
de Araguari




* Os trechos em itálico são da letra de "Araguari II (meus dias de vândalo)". A foto é de autoria de Patrícia Caggegi. O download do EP pode ser feito no site do Jair Naves.

Arquivos do blog