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18 de fevereiro de 2008

Senhor F: dez anos de música independente

Março de 1998. A internet engatinha no Brasil, as gravadoras ainda faturam milhões com vendas de CD's, as rádios continuam ocupando o espaço de principal veículo de difusão musical no país e o jabá toma conta da maioria delas massacrando qualquer coisa que surja fora do mainstream e condenando o ouvinte a escutar o mesmo lixo dezenas de vezes o dia inteiro. Foi em meio a essa combinação medonha que surgiu um dos principais e mais antigos sites de música independente do Brasil: o Senhor F.

Responsável por um selo que conta com sete artistas (Beto Só, Volver, Superguidis, StereoScope, Los Porongas, Graforréia Xilarmônica e Sapatos Bicolores), um festival que já teve três edições (Senhor F Festival), 40 singles virtuais e mais uma penca de iniciativas, o Senhor F é hoje referência quando se fala de música independente de Brasília, do Brasil e da América Latina.

Fernando RosaAbaixo segue a entrevista na qual Fernando Rosa (foto ao lado), o homem responsável pelo Senhor F, fala sobre o surgimento da revista virtual, seus projetos, rock latino americano e cenário da música independente nacional hoje e há dez anos atrás.


MEIO DESLIGADO - Os últimos anos têm sido marcados pela efervescência da produção independente. Quando o Senhor F nasceu, como era o cenário?

FERNANDO ROSA – A primeira edição de Senhor F é de março de 1998 e já era apenas on line. Na época, a movimentação era restrita e com uma cena marcada por uma postura defensiva. Havia bandas legais, uma certa produção que começava a aflorar, mas as bandas ainda insistiam em cantar em inglês. Um pouco depois, começa o processo de transição para um novo momento, com o surgimento de bandas como Mopho, Cachorro Grande, Autoramas, Prot(o). Estas e outras bandas já apontavam para a construção de uma linguagem mais sintonizada com a realidade de sua época. Nessa mesma época, o crescimento da utilização da internet impulsionou o desenvolvimento da cena, com uma maior troca de informações, maior quantidade de shows, lançamentos de discos e festivais.

MD - Qual importância você atribui à internet dentro da produção musical independente hoje no Brasil?

FR – Acho que foi decisiva, mas vejo isso com naturalidade, pois a internet é apenas um avanço tecnológico no processo de comunicação entre as pessoas. O que destacaria como extremamente saudável foi a imediata percepção que tiveram as bandas, os organizadores de festivais e boa parte dos produtores para a eficiência da nova ferramenta. O fato do rock ser um gênero musical com peso na juventude, e de classe média, em especial, de certa forma contribuiu bastante para isso. Por outro lado, a rápida disseminação do uso de computadores e, mais recentemente, da banda larga no Brasil, também ajudou bastante no processo. Agora, vejo isso como um meio, pois o que ainda define a força, a relevância cultural, a importância histórica de uma cena é sua qualidade autoral, a sintonia de seus atores com o mundo em que vivem.

MD - Uma das principais características da cena independente é que as pessoas não se contentam em fazer só uma coisa. Elas geralmente expandem suas iniciativas criando ramificações em várias áreas. O Senhor F hoje, por exemplo, está presente como site, blog, programa de rádio, selo, festival e projeto social (esqueci algo?). Isso é uma tendência no cenário independente?

FR – Acho que o “do it yourself”, por um lado, e a “jornada dupla”, ou mesmo tripla, são uma necessidade imposta pela realidade atual, marcada pelas mudanças nas relações de produção, divulgação e comercialização de música, e mesmo de outras atividades artísticas. As bandas já não contam com “contratos milionários”, nem com empresários-babás, que cuidam até da vida pessoal dos artistas, ou grandes vendagens de discos. Ou seja, está em curso uma mudança que, particularmente, vejo extremamente positiva, pois democratiza o acesso à produção para o artista e ao produto para os consumidores. E as bandas, especialmente, devem buscar novas formas de tocar suas carreiras, com sustentabilidade, mais como um retorno do seu trabalho, do que de uma suposta “fama”. Em nosso caso, acho que extrapolamos ou pouco, pois acabamos entrando em diversas áreas que, se são afins, é certo, impõe uma disciplina e um ritmo de trabalho por vezes fora dos padrões que imaginamos inicialmente. Mas sempre damos os passos de acordo com as nossas possibilidades, sabendo que, em um primeiro momento, algum setor perderá um pouco de fôlego, mas que, em seguida, o conjunto ganha com a nova atividade. Essa visão nos levou a criar a agência diária de notícias, o selo digital, depois o selo físico, e dois programas de rádio, um deles mais recente, voltado para a música sul-americana, além de desenvolver eventos e projetos, como a Noite Senhor F, o Senhor Festival e o Senhor F na Escola.

MD - Com toda a experiência de vários anos no cenário do rock como você situa o atual momento com relação a qualidade, quantidade, acesso do público, democratização, gravadoras, organização etc?


SF - Como disse anteriormente, vejo que vivemos por um lado um momento de extrema confusão, insegurança com o futuro e posturas medíocres e acovardadas diante do novo. Antes de mais nada, as gravadoras pagam um preço da mudança de modelo, mas também elas fizeram por merecer as dificuldades por que passam atualmente. Impuseram um esquema de “monocultura”, nos anos 90, sem qualquer redução nos preços dos discos, ao contrário, o que acabou produzindo a “pirataria”. Depois, histericamente trataram de matar o Napster, quando surgiu, ao invés de construir a partir dele um grande sistema de distribuição universal de música. Por conta disso, o Brasil será um dos países do mundo com maior dificuldade para vingar o sistema de venda digital de música. Aqui, ao contrário de países como o Japão, por exemplo, os consumidores foram, e continuam sendo agredidos por preços exorbitantes e por uma retórica anti-pirataria reacionária. Mas, acima disso tudo, a verdade é que as relações mudaram em todos os setores, e, sábio, nesse momento, é quem estiver aberto a experimentar novas situações, diferentes modelos, alternativas. As novas tecnologias, portanto, ampliaram sem precedentes as possibilidades de se gravar um disco, antes um “direito” apenas de quem tivesse um contrato com uma grande gravadora. Se hoje é fácil gravar um disco, por um lado, por outro, acaba produzindo produtos mal resolvidos, seja conceitualmente, ou em termos de repertório. Ou seja, diante disso tudo, nunca foi tão necessário ao artista pensar de forma global a sua obra, desde a composição até o processo final de comercialização de seu trabalho.

MD - Quais são e onde estão localizadas as iniciativas mais interessantes dentro do cenário independente brasileiro atualmente?

FR – O Paulo André, organizador do Abril Pro Rock, e vice-presidente da ABRAFIN (Associação Brasileira de Festivais Independentes) tem uma frase, que acho definitiva: “a nova música brasileira passa pela plataforma dos festivais independentes”. Nada mais certo atualmente do que isso, pois é na rede de festivais independentes que estão os artistas mais criativos, mais sintonizados com a realidade do país, com a cultura jovem nacional. Além dos festivais, a vida inteligente, a informação saudável e livre dos padrões arcaicos que ainda reproduzem o “modus-operandi” das grandes gravadoras, também está na internet, nos blogs, sites e programas de radioweb. Por outro lado, são os selos independentes que dão vazão, não apenas em termos de quantidade, mas, especialmente, de qualidade, da grande produção musical do país. Se a banda Los Porongas, do Acre, por exemplo, fosse esperar pelo esquema “mainstream” para existir nacionalmente, possivelmente ainda não tivesse saído dos limites de seu estado, ao invés de ser considerada uma revelação nacional, graças ao papel de um selo modesto, mas comprometido com a qualidade e a visibilidade das culturas além dos grandes centros (no caso, o nosso selo, Senhor F Discos). Ainda citando um outro exemplo do selo, podemos lembrar a banda Superguidis que teve seu disco de estréia saudado como um dos melhores da década por muita gente, mas que teve sua master rejeitada, ou sequer ouvida, por selos notórios.

MD - Você acredita na viabilidade, auto-sustentabilidade do mercado de indie rock nacional? É possível criar um mercado continental?

FR – Penso que sim, mas isso é coisa que exige uma postura, um compromisso político e estético e, acima de tudo, uma aposta em uma estrutura de mais longo prazo. Ainda se pensa de forma imediatista, de lançar um disco, “estourar” – para usar um dos verbos tradicionais do velho esquema – e daí se viabilizar vinculado a alguma grande gravadora. O problema é que as grandes gravadoras já não existem mais e, quando pensam em lançar alguém é o clone do clone do clone do sub-qualquer-coisa. Uma conhecida gravadora, por exemplo, diz que está investindo em “novos talentos”, mas o que se viu até agora é a busca de artistas que apenas reproduzem o padrão do mercado. A existência de um mercado depende da combinação de estabilidade econômica no país, qualidade da produção independente e afirmação da sua plataforma de visibilidade, que são fundamentalmente os festivais, mas também os selos e as mídias especializadas. Com isso, acredito que podemos não só afirmar um mercado nacional, mas na esteira do processo de integração sul-americano em curso, construir um mercado continental, agregando os demais países da região. As situações vividas são muito parecidas, e a internet está se encarregando de mediar as diferenças existentes, promovendo uma inédita troca de informações. Nós mesmo, saímos de um processo apenas informativo, por meio de matéria na revista, para um programa de rádio, SENHOR F SEM FRONTEIRA, na Rádio Câmara, com versão online. Um programa desses, por exemplo, se “pega”, com diz o dito popular, pode ajudar bastante a formar um mercado, mesmo que ainda incipiente, inicial.

MD - Você é um grande conhecedor da produção musical na América do Sul. Por que os brasileiros sabem tão pouco sobre a música dos nossos vizinhos? Como é o cenário nesses países?

FR – Olha, penso que sabemos pouco por vários motivos, que vão da colonização cultural – via música americana, passando pela diferença da língua e também pelo nosso “excesso” de produção musical. Mas, no essencial, acho que a falta de uma política cultural mais efetiva, voltada para estimular as relações com os países vizinhos também tem peso nisso tudo. Nesse sentido, a decisão da Petrobras de aprovar economicamente os festivais independentes comprometidos com a integração sul-americana é um avanço e demonstra o comprometimento do governo brasileiro. A realidade das cenas regionais nos demais países é concentrada basicamente nas capitais nacionais, diferente do Brasil onde, ao contrário, a nova cena independente dissemina-se por fora dos grandes centros. Mas, tirando isso, a falência da grande indústria, o mercado pirata e as dificuldades da cena e os desafios em lidar com a nova situação são as mesmas. Hoje, as coisas estão mudando, a partir da eleição de presidentes de origem popular, nacionalista ou de esquerda, como Lula, Kirchner, Chavez ou Evo Morales. A nova orientação geopolítica da região aponta para uma valorização da integração, da tomada de consciências sobre as riquezas da região, como o gás, o petróleo e as florestas. Dentro dessa mobilização mais ampla, existe o sentimento de que a via da integração mais rápida e efetiva é a cultural.

É legal observar que, se antes quem comandava o intercâmbio era a grande indústria fonográfica, agora são os festivais, os selos e as bandas independentes que promovem a aproximação.

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