"Venha em chamas" é a faixa de abertura de Veterano, disco do cearense Nego Gallo. Pode ser interpretada ao mesmo tempo como uma previsão ou uma descrição do momento. Fortaleza começou 2019 pegando fogo, literalmente. Logo no dia 2 de janeiro iniciou-se o que viria a ser chamado de "a maior onda de ataques da história do Ceará". Foram tiros, ônibus queimados e até uma tentativa de se explodir um viaduto. Em meio ao caos era lançado, no dia 10 de janeiro, Veterano.
Se o contexto é pesado, musicalmente se apresenta como um contraponto através da mistura ensolarada do rap moderno com o reggae e seus derivados. É como um trap jamaicano, pesado, cadenciado, quente. "No meu nome", a primeira música propriamente dita ("Venha em chamas" é apenas um interlúdio), é um trap com guitarras texturizadas que lembram os nova-iorquinos do Ratatat mas também faz uso de steelpan, instrumento percussivo típico da música da América Central. É um dos pontos altos do disco e tem a participação de Don L, antigo parceiro de Nego Gallo no Costa a Costa (coletivo que criaram em meados dos anos 2000 e que é autor do clássico do rap brasileiro Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa). Toda a parte cantada por Don L é uma síntese da temática do disco e se encerra com o trecho "pensei que aquela última rima que embalou o irmão / naquela última tarde / não era minha, era da minha cidade / onde os moleque corre o dobro pra viver a metade / e raro é se manter de pé com a integridade intacta / pânico de nada, é tudo estrada / Veterano, Gallo".
A sequência com "O bagui virou" segue na estética trap e trata da vida no rap. Um dos hits do álbum, foi o primeiro single do disco e já era tocada ao vivo há tempos (com direito a vários moshs). Daí em diante outras influências tomam conta e uma sonoridade mais pop entra em evidência. O reggae se destaca em "Onde há fogo há fumaça", "Downtown" e "Passado presente" e o funk em "DVD". "Downtown" é a música mais pop de Veterano, tanto musicalmente como em termos de quantidade de execuções. Seu refrão romântico ("Subi a favela, flor / Minha donzela tem trança nagô / Dançando é sensacional / Desci a favela, vou / É Deus quem zela a fé à vera / Eu vim das vielas de Downtown") contrasta com a crueza de trechos como "Conheço as esquinas, vi gente morrer / Hey, deixa eu viver" ou "Pago à vista essa vida / Então irmão, deixa eu viver".
Calor, pobreza, maconha e religiosidade permeiam o disco e ajudam a criar uma imagem da Fortaleza desse fim de década retratada por Nego Gallo. Apesar do peso inerente à realidade, é uma sonoridade tropical também marcada pela positividade. Assim como em outros álbuns de rap, a fé e citações religiosas são frequentes, reflexo da presença da igreja nas periferias, onde supre o papel do Estado ausente. Na música de Nego Gallo, a luta de classes caminha junto de Deus, como explicita na letra de "DVD": "Aqui ninguém herdou nada / A luta foi o legado / Rico exaltado humilhou / Humilde eu vim vencer / O inimigo tem a força / Mas só Jesus o poder / A caminhada me fez mais forte / A sorte sempre me acompanhou / Eu sou do corre / É Deus a favor". "Acima de nós só o justo", última música do disco, segue essa linha. Baixo de dub e batida trap como trilha para se descrever a busca por ascensão pelo rap ou pelo crime ("Pivete driblou os cone / Os homi' vê só o vulto / Descendemos de reis e acima de nós, irmão, só o Justo"). O risco corrido pra se manter vivo e a crença de que se a sociedade é contra, é preciso crer que em algum lugar há um ser superior que zela por você e seus pares.
Um dos melhores discos de 2019.