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19 de março de 2015

Alta ajuda

Alta Ajuda, de Francisco Bosco, é um livro de filósofo punheteiro. Em geral, Bosco parte de suas próprias experiências e fala de si mesmo supostamente para tentar entender o outro. Egocentrismo e certo pedantismo à parte, a coletânea de textos publicados por Bosco em jornais e revistas (reescritos para a publicação do livro) possui boas reflexões e análises. Quando deixa de falar de si mesmo e passa a observar as experiências ao seu redor com maior desapego, interpreta a vida cotidiana com sensibilidade e seu grande repertório teórico enriquece a escrita.

Música popular, arte moderna, futebol, ocupações em favelas e relacionamentos são alguns dos temas abordados. Usa o caso Belchior, por exemplo, para tratar da sociedade de controle - reforçada pela(s) mídia(s) - em que vivemos. "Estamos trancados na realidade, ao ar livre, gradeados por milhares de olhos que nunca fecham", escreve. Ou, ao analisar o ato da escrita (os motivos de quem escreve e de quem lê) e sua relação com a publicidade, crava: "A publicidade, assim, diz respeito ao que o sujeito é. A arte (como o pensamento), está interessada no que o sujeito pode ser."

"Não há sol a sós" (reproduzido abaixo), sintetiza o que é apresentado em Alta Ajuda e é um de seus melhores momentos. 

A alegria e a tristeza são os dois afetos fundamentais. A alegria é o que aumenta a nossa potência de agir, como se fosse a imagem invertida da alegria. Pertencente à família da alegria, a esperança, por exemplo, "é uma alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura, de cujo acontecimento nós duvidamos", mas que desejamos. Ao contrário, filiado à tristeza, "o medo é uma tristeza inconstante, nascida da imagem de uma coisa também duvidosa", mas que tememos. Essas ideias estão na terceira parte da Ética, de Espinoza, "o príncipe dos filósofos", segundo Deleuze. Nela, numa arquitetura rigorosa, os afetos são dispostos como diante de um espelho. Podemos acrescentar a esses pares invertidos a admiração e a inveja. Esses fatos designam dois modos de olhar: um deles produz alegria; o outro, tristeza. É um dever existencial de cada sujeito fazer com que o olhar admirativo prevaleça sobre o olhar invejoso.
A palavra ‘invejar’ vem do latim ‘invidere’. É composta pelo prefixo ‘in-‘, mais o verbo ‘videre’, de onde vem o nosso ‘ver’. O prefixo latino ‘in-‘ pode ser tanto uma função privativa (como em ‘incrível’), quanto designar um ‘movimento para dentro’, para o interior de algo. Creio ser este segundo caso seu significado em ‘inveja’ que, portanto, quer dizer um olhar que vai para dentro de alguma coisa. Invejar alguém é desejar ocupar o lugar do outro, é desejar ser o outro, é desejar anular o outro, deixar de vê-lo e ver a si mesmo em seu lugar. A expressão popular tem precisão cirúrgica: é o olho gordo, o olho com fome, o olho que engole o outro.
Já ‘admirar’ se refere ao modo contrário de olhar. ‘Admirari’, em latim, reúne o prefixo ‘ad-‘, mais o verbo ‘mirari’. O prefixo ‘ad-‘ significa ‘em direção a’, ‘aproximação’. Admirar, portanto, é o olhar que se aproxima de algo, que vai em sua direção. A diferença entre o movimento para dentro (inveja) e o movimento de aproximação (admiração) é decisiva. O olhar que admira não deseja tomar o lugar do outro. Sua condição primeira e sine qua non é reconhecer a existência do outro. Ele se aproxima do outro, do ser admirado, mantendo a distância para que este exista.
A inveja é um olhar que deseja eclipsar o ser invejado. Pressupõe a admiração, pelo menos em um estado latente: o invejoso deseja aniquilar aquele cujo brilho ele reconhece. Não se inveja qualquer pessoa, nem tampouco todas as pessoas invejarão as mesmas pessoas. A inveja obedece a critérios que a psicanálise chamaria de imaginários. Por imaginário não se deve entender alguma coisa da ordem da imaginação, no sentido do que não existe realmente. O imaginário é o registro do nosso psiquismo onde se situa a imagem de nós que nós gostaríamos de ser, ou que gostaríamos que os outros vissem. A minha autoimagem tem tais e tais características, que eu me esforço para realizar em mim. É o que nos leva à inveja.
Estaremos expostos à inveja quando estivermos diante de alguém que realiza em si, a nosso ver, as características da nossa autoimagem. Um ator dificilmente invejará um campeão mundial de natação – mas sim o ator que está no camarim ao lado, e que é protagonista da peça em que ele é coadjuvante. Há, assim, uma lógica da inveja. Mas o que importa é sua ética.
A inveja detém o estatuto do ridículo. Pois é uma cena psíquica solitária, de que na maioria das vezes o outro, invejado, nem sequer fica sabendo. É uma luta sem adversário, vã. Ou ainda, uma luta em que o adversário é o próprio eu, que necessariamente sairá perdendo. Nunca se conseguirá ser o outro invejado anulando-o, real ou imaginariamente.
Além de triste, a inveja é também burra. Vedando-se ao brilho do outro, ela se fecha à possibilidade de alimentar-se desse brilho. É aqui que entra a superioridade – moral, existencial e intelectual – da admiração. O olhar que admira se aproxima do outro a fim de reconhecer-lhe as qualidades, identificá-las e procurar emulá-las. Emular é uma bela palavra. Ela designa a ação por meio da qual procuramos estar à altura do que reconhecemos como bom. A admiração exige uma capacidade perceptiva desenvolvida para identificar as qualidades do outro e procurar realizá-las em si mesmo. Voltando a Espinoza, é por isso que a admiração é uma das filhas da alegria (enquanto a inveja o é da tristeza): porque ela aumenta nossa capacidade de agir.

Termino esse minimanifesto existencial citando um verso que contém todos os aspectos da admiração como dever: sua dimensão política (de reconhecimento do outro), intelectual (de capacidade perceptiva) e existencial (deixar-se banhar pela luz do outro e alimentar-se dela). É um verso do grande poeta Arnaldo Antunes: "Não há sol a sós". Não há sol. Há sóis.


E pra não parecer que a abertura deste texto foi implicância minha, aqui está a tirinha do Allan Sieber na qual ele tira um sarro do mesmo assunto.



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