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17 de dezembro de 2014

Filosofia do dub (e do filtro)

Deparei-me com esse texto do Hermano Vianna, publicado na Folha de S. Paulo em 2003, e achei o tema bastante atual. Uma constante da nossa época é o grande volume da produção cultural, ampliado pela democratização dos meios de produção (softwares e hardwares) e de difusão. Quanto maior a produção, mais se destaca a necessidade de filtros que a explorem e selecionem as produções que se sobressaem. O que Hermano destaca – entre outras coisas – é o que se perde nesse processo de “curadoria”. Basta uma breve visita aos principais blogs e sites culturais brasileiros para se perceber isso: estão, praticamente todos, repercutindo as seleções de veículos estrangeiros como Pitchfork, Stereogum, NME e outros. É como se não houvesse outra produção musical além daquela realizada na América do Norte, Europa e Brasil. Em 2015 (praticamente), continuamos reproduzindo processos de séculos atrás, guiados pelo que é determinado pelo “mundo desenvolvido”.

Com isso em mente, é ainda mais interessante perceber fenômenos locais e “fora do eixo”, como ele mesmo aponta, como o reggae (décadas atrás) ou o funk brasileiro (atual).

Longe da clareza e da amplitude de Hermano, me limito aqui a fomentar a reflexão. Boa leitura!

Lee Perry

Filosofia do Dub
Por Hermano Vianna
publicado no caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 09/11/2003

A bibliografia dos mais militantes textos anti-imperialistas é uma aula de imperialismo. Os autores básicos são sempre os mesmos: Karl Marx; Theodor Adorno; Eric Hobsbawn; Stuart Hall e por aí afora, ou melhor, cada vez mais para dentro de um certo “cânone” ocidental, aquele que inventou a crítica do Ocidente. Quando aparece um nome “fora-do-eixo”, é fácil perceber as razões que motivaram sua escolha: ou leciona numa poderosa universidade européia/norte-americana, ou teve algum dos seus livros publicado por essas universidades. Mesmo a recente onda dos estudos “pós- coloniais”, com tantos nomes aparentemente indianos ou africanos fazendo sucesso, foi produzida no âmbito das editoras, revistas acadêmicas e seminários dessas universidades. O resto do mundo, como nos chama a revista Colors (da Benetton), segue com submissão efusiva (Sartre voltou à moda!) o hit-parade intelectual que povoa as páginas da New York Review of Books, do Times Literary Supplement ou dos Actes de la recherche.

Poucas vezes, a não ser em estudos muito especializados - e só lidos obviamente por especialistas -, temos notícias sobre a produção editorial (aqui incluo também a literatura) de países como a Indonésia, o Japão, a África do Sul ou a vizinha Colômbia. Geralmente esperamos que gente como Nestor Garcia Canclini, Kenzaburo Oë ou Mia Couto faça sucesso em Londres, em Paris, na reunião da Modern Language Association ou ganhe um Prêmio Nobel para que possamos publicá- los, lê-los ou mesmo ouvir seus nomes no Brasil. O “Primeiro Mundo” filtra as informações provenientes do “resto do mundo” que devem chegar até nós, mesmo ao ambiente anti-pop de nossa vida acadêmica. São raros os intelectuais brasileiros que mantêm canais de comunicação freqüentes com a produção universitária de países “periféricos”, sem a mediação de Harvard/Yale/Princeton ou de seus representantes.

Pena: não temos nem idéia do que estamos perdendo. (Imagine o que perderíamos se tudo o que pudéssemos ler sobre o Brasil fosse o que foi publicado em inglês ou francês.) Estamos deixando de estabelecer contato com muitas novas idéias que poderiam ser importantes, justamente por estarem baseadas em perspectivas saudavelmente distanciadas dos padrões TOEFL ou CNRS (gostei de juntar os dois níveis bem diferentes!), para dar novos rumos a debates que se tornaram insuportáveis com a reciclagem de duas ou três velhas teorias eurobeligerantes. Por outro lado, deixamos também de ser lidos por gente que pode nos fazer críticas não-viciadas pelas últimas obsessões do filósofo francês ou sociólogo alemão em voga.

Por exemplo: qual foi o último livro de um autor jamaicano publicado no Brasil? Houve um primeiro? Acho que não. E quem decidiu, por todos nós, leitores brasileiros, que tudo que é escrito na Jamaica, ou por jamaicanos, não nos interessa?

Tive o prazer de ver O Mistério do Samba publicado na Jamaica - e também em Barbados e Trinidad e Tobago - pela University of West Indies Press. A editora jamaicana me convidou (junto com a embaixada brasileira em Kingston) para promover o lançamento com palestras e noites de autógrafos. Aceitei o convite sem pestanejar. Afinal, totalmente ignorante com relação à produção universitária caribenha (descontando alguns livros cubanos comprados nos anos 70), foi com surpresa radical e enorme alegria que recebi a notícia do interesse jamaicano em publicar o meu livro.

Tenho uma razão muito pop para ter ficado tão alegre. Jamaica, para mim, sempre foi país amado e respeitado por, antes de ser a terra do reggae ou de Bob Marley, ser a terra do dub. Muita gente pode não ter noção do que estou falando. O dub foi a maneira que os produtores musicais e os engenheiros de som jamaicanos inventaram, desde meados dos anos 60, para fazer música e pensar a música. As canções deixaram de ser encaradas de maneira linear. Os sons passaram a ser montados não-linearmente, antecipando a maneira de editar textos/barulhos/imagens (o cortar-e- colar, ou cut-and-paste) que se tornou dominante a partir da personalização dos computadores.

As técnicas do dub, desenvolvidas por gênios - para mim tão geniais quanto Ludwig Wittegenstein ou Roman Jackobson, mas não quero impor meus critérios de julgamento para ninguém - como King Tubby ou Lee “Scratch” Perry, estão hoje na base da totalidade da produção musical de todo o mundo. Sem dub não haveria hip hop, techno, drum’n’bass, ou mesmo o mais recente sucesso da Britney Spears ou do Zeca Pagodinho.

No encarte do primeiro disco - lançado em 1999 - da gravadora de Bally Sagoo, um dos principais produtores/compositores do pop indiano (tendo iniciado a onda de remixes das trilhas sonoras de Bollywood), o dub está definido da seguinte maneira: “estilo de música com a combinação da contínua pancada da bateria com linhas pesadas de baixo, acompanhadas por uma colagem de efeitos sonoros de eco maluco onde os vocais estão esparsa mas inventivamente ecoando ao fundo...” Uma definição certamente engraçada, mas enganosa.

O dub não é um estilo musical: é mais um procedimento filosófico. O dub não é uma forma, mas sim um “modo de agenciamento de formas”. Roubo essas palavras de Jean Laude, um dos principais pensadores da relação entre o modernismo e a África. Segundo Laude, o que interessava a Picasso na “arte negra” não era o exotismo ou o primitivismo, mas sim a maneira mais-que- moderna que as máscaras e as estatuetas africanas propunham para se pensar o mundo visual, onde a combinação, as redes de sentido e a "montagem" têm mais importância que a organização via a linearidade da lei da perspectiva. O que os jamaicanos nos ensinaram com o dub era semelhante: uma outra maneira de se relacionar com os sons, como se fossem elementos arquitetônicos que podem ser combinados de muitas formas diferentes, não privilegiando nenhuma dessas formas como a original. E fizeram tudo isso através de uma revolução tecnológica tremenda, e praticamente sem recursos tecnológicos.

O primeiro grupo de rock a aprender e utilizar o conteúdo mais importante da lição jamaicana foi o Roxy Music. Brian Eno, tecladista desse grupo, já usava sintetizador e era fã de La Monte Young e John Cage - por isso conseguiu entender imediatamente a importância do dub. Os produtoresmusicais jamaicanos não tinham sintetizadores nem, acredito, informações sobre as pesquisas de ponta na música contemporânea. Mesmo assim podiam e podem ser descritos como filósofos. Na definição de Deleuze e Guattari, um filósofo é um “sintetizador de pensamentos”, um artesão de conceitos.

Os estúdios de gravação de Kingston eram precários (e continuam não tendo condições de competir com os estúdios do “Primeiro Mundo”). Lição: não precisamos ter os últimos upgrades, ou as máquinas mais poderosas, para ter as idéias - ou inventar os procedimentos - que vão determinar os futuros desenvolvimentos das máquinas que - por sermos pobres - não podemos ter ou construir.

Os jamaicanos ainda se maravilham com o sucesso mundial do reggae, como se até não fossem totalmente dignos de sua invenção. Como um país tão pequeno, tão pobre, tão periférico foi capaz de tal façanha? Ainda bem que tamanho e riqueza não são documentos. Tanto o dub quanto o reggae são produtos de uma corrente de energia alternativa que sempre resistiu a ser submissa intelectualmente, com a desculpa de ser pobre, com relação ao resto do mundo. A Jamaica poderia pensar/executar o que o resto do mundo nunca pensou/executou, o que o resto do mundo seria obrigado a copiar. E foi o que fez. Nenhum outro país do “Terceiro Mundo” tem presença tão marcante e influente no cenário da nova cultura popular globalizada.

Porém, repito, mais que uma revolução musical ou tecnológica, o dub significava uma revolução conceitual, tão importante para a música pop como foram o aparecimento da música concreta para o campo “erudito” ou o choque da edição “acossada” de Godard, ou - antes dele - de Vertov, para o campo cinematográfico. Uma invenção como o dub não surge totalmente do nada, sem conexão com outros focos vizinhos de “novo pensamento”. A “energia” (a “vibration”, como dizem os cantores de reggae) que alimentou a criação do dub deveria estar presente em outros ambientes da vida intelectual jamaicana. E estava. E está.

Onde está? Não sabia, apenas intuía. Não sabia nada sobre a Jamaica, além da música. O Brasil também não sabe. Apesar da importância cada vez maior que o reggae têm entre nós. Exemplos? Ligue o rádio. Ouça Skank, Natiruts, Paralamas, Cidade Negra, Gilberto Gil. Vá a São Luís do Maranhão dançar juntinho em qualquer festa de radiola. Pense na maneira como os bloco afros de Salvador transformaram o reggae em samba-reggae, base de toda a axé music. Que outro estilo musical internacional tem tanta penetração no nosso gosto popular? Mas nesse gosto popular, a Jamaica é imaginada apenas como um território mítico, uma ilha tropical, terra de Bob Marley, das tranças rastas e da maconha. Mito é bom. Mas cair na realidade, de vez em quando, pode ser melhor. Foi o que fiz, indo parar logo numa universidade jamaicana, que nenhum turista visita (aliás turista que vai para Jamaica só fica em resorts praianos totalmente separados da realidade do povo da ilha), mas é lugar extremamente revelador sobre o que acontece de realmente importante no país.

A primeira revelação - bastante óbvia e que não deveria causar nenhum estranhamento - que um brasileiro tem ao entrar numa universidade jamaicana é ver que ali só há negros, do reitor ao servente, passando por praticamente todos os alunos. Imediatamente ficamos tomados pela vergonha de ter tão poucos negros nos nossos cursos superiores. Passei horas sem ver um único outro "branco" nas imediações. Fiquei alegre por ser tão minoria.

Minha primeira atividade no campus não poderia ser mais adequada para uma imersão profunda - com jeito de tratamento de choque - na sociedade local. Era uma palestra do Tony Rebel, estrela politizada do ragga, o estilo mais popular do reggae atualmente. Sem muita preparação, cai dentro de um debate onde todos os ânimos estavam exaltados. Era para mim impossível acompanhar o que estava acontecendo, pois ninguém no recinto falava, literalmente, o mesmo dialeto. Havia um professor com sotaque de Oxford. Tony Rebel falava o inglês esperto das ruas de Kingston. Um estudante vociferava em crioulo, e outro na linguagem especial dos rastafari. Ninguém trocava de "estilo lingüístico" ao falar com os outros. Mas todo mundo se entendia perfeitamente. Todo mundo ali era barulhentamente poliglota, menos eu.

A palestra tinha sido organizada pela Reggae Studies Unit, um centro de estudos da cultura popular jamaicana, responsável entre outras coisas pela Bob Marley Lecture, importante palestra anual que já contou com a participação de Omar Davis, na época ministro da fazenda, dissertando sobre a contribuição de Peter Tosh para a identidade nacional.

Fundadora da Reggae Studies Unit, Carolyn Cooper atuou como uma espécie de cicerone no meu tour pela academia jamaicana. Não poderia haver guia melhor. Carolyn é autora de um livro brilhante, chamado Noises in The Blood (o subtítulo é "Oralidade, gênero e o corpo 'vulgar' na cultura popular jamaicana"), que deveria ser lançado no Brasil. Há vários capítulos que são de leitura obrigatória para quem debate o pop contemporâneo de qualquer lugar do mundo: um que faz a análise literárias das letras de Bob Marley; outro que leva o dancehall (outros intelectuais jamaicanos desprezam essa nova forma de reggae, do mesmo modo como o funk carioca é desprezado entre brasileiros) a sério, e ainda outro que disseca o filme Harder They Come.

Todos esses assuntos convivem dentro de uma trama conceitual caribenha, ou negro-atlântica, onde aparecem lado a lado pensamentos de Edouard Glissant, Derek Walcott, Zora Neale Hurston, George Lamming, Paul Gilroy, Mutabaruka, Shabba Ranks e da magnífica Louise Bennett, pioneira no uso do crioulo jamaicano como língua literária, autora - nos anos 50 - do poema Colonização em Reverso que profetizava ironicamente a importância que os imigrantes jamaicanos iriam ter na cultura da Inglaterra de hoje. Entre exemplos tipicamente locais, nos quais quase sempre nos reconhecemos, descobrimos também atalhos para novas maneiras de perceber nossas velhas obsessões nacionais como a questão da mistura de culturas e raças.

Voltei da Jamaica com uma idéia fixa: a da necessidade de haver no Brasil seminários pop- acadêmicos, pelo menos anuais, onde nos fossem apresentadas a cada vez as complexidades surpreendentes de pensamentos produzidos em partes diferentes do mundo, partes tão distantes do "centro do mundo" quanto o nosso país. Espaços de reflexão onde nós pudéssemos conviver com as idéias de gente como Carolyn Cooper, ou Epeli Hau'ofa (de Tonga), ou Renato Constantino (das Filipinas - isso só para ficar em ilhas), ou mais gente que infelizmente não conheço, gente que nos faça pensar coisas diferentes, diferentemente, bem longe do lugar comum nosso velho conhecido euro-norte-americano.

Fica aqui meu apelo: por canais diretos de comunicação intelectual com o mundo! Com o mundo inteiro!

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