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12 de dezembro de 2013

Sobre o fenômeno dos trabalhos de merda

Deu trabalho, mas segue abaixo a tradução que fiz do texto de David Graeber, professor de antropologia na London School of Economics, para a revista ativista Strike Mag sobre o mercado de trabalho. O título original refere-se aos "bullshit jobs". Apesar de ter traduzido "bullshit" ao longo do texto como "besteira" ou "bobagem", decidi traduzir o termo "bullshit jobs" como os "trabalhos de merda" acima, apesar de não ser o correspondente literal.

Em 1930, John Maynard Keynes previu que, ao fim do século, a tecnologia teria avançado o suficiente ao ponto de países como Grã-Bretanha e Estados Unidos terem alcançado jornadas de 15 horas semanais de trabalho. Temos toda a razão em acreditar que ele estava certo. Em termos tecnológicos, somos perfeitamente capazes disso. Mas ainda não aconteceu. Em vez disso, a tecnologia foi trabalhada, por assim dizer, para conseguir meios de nos fazer trabalhar mais. Em ordem para conseguir isso, foram criados empregos que são, efetivamente, inúteis.

Uma grande quantidade de pessoas, na Europa e na América do Norte principalmente, passam suas vidas ativas inteiras exercendo funções que secretamente acreditam não precisarem realmente serem feitas. O dano moral e espiritual que vem dessa situação é profundo. É uma cicatriz em nossa alma coletiva, apesar de ninguém conversar sobre isso.

Por que a utopia prometida por Keynes - ainda que avidamente esperada nos anos 60 - nunca se materializou? A constatação padrão atualmente é que ele não calculou o aumento massivo no consumismo. Dadas as opções de se trabalhar menos ou ter mais brinquedos e prazeres, escolhemos coletivamente a última opção. Isso apresenta uma boa estória de moralidade, mas até mesmo uma reflexão momentânea mostra que isso não pode ser verdade. Sim, nós assistimos à criação de uma infinita variedade de novos trabalhos e indústrias desde os anos 20, mas muitos poucos deles têm a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones ou tênis extravagantes.

ilustração de John Riordian


Então, quais são esses novos trabalhos, precisamente? Uma matéria recente sobre o emprego nos EUA entre 1910 e os anos 2000 nos dá uma imagem clara (e, noto, algo igual ecoou no Reino Unido). Durante o último século, o número de trabalhadores empregados com serviços domésticos, na indústria e nas fazendas entrou em colapso dramaticamente.  Ao mesmo tempo, trabalhos "gerenciais, de escritório, vendas e de serviços" triplicaram, passando "de um quarto a três quartos do emprego geral". Em outras palavras, os trabalhos de produção, exatamente como previsto, foram largamente automatizados (mesmo se você considerar os trabalhadores da indústria globalmente, incluindo as massas trabalhadoras na Índia e na China, essas pessoas não formam um percentual tão grande em relação à população mundial como era antigamente).

Mas em vez de permitir uma redução massiva das horas de trabalho para liberar a população mundial para buscar seus projetos pessoais, prazeres, visões e ideias, nós vimos o inchaço não necessariamente do setor de "serviços" mas do setor administrativo, incluindo a criação de novas indústrias como a de serviços financeiros e telemarketing, além da expansão sem precedentes de setores como o de leis corporativas, administração acadêmica e de saúde, recursos humanos e relações públicas. E esses números sequer refletem todos aqueles que prestam serviços administrativos, técnicos ou de segurança para essas indústrias, nem todo o tipo de serviços auxiliares (lavadores de cães, entregadores de pizza 24h) que só existem porque todas as outras pessoas estão passando tempo demais trabalhando.

Esses são os que proponho em chamar de "trabalhos de merda".

É como se alguém lá fora nos mantivesse fazendo trabalhos sem sentido apenas para que estejamos trabalhando. E aqui, precisamente, está o mistério. No capitalismo, isso é exatamente o que não deve acontecer. No velho estado socialista ineficiente, no qual o emprego era considerado tanto um direito como um dever sagrado, o sistema criava quantos empregos fossem necessários (por isso na União Soviética as lojas tinham três balconistas para se vender um pedaço de carne). Mas, é claro, esse é o tipo de problema que a competição de mercado supostamente corrigiria. De acordo com a teoria econômica, ao menos, a última coisa que uma firma em busca de lucro iria querer seria gastar dinheiro com empregados desnecessários. Apesar disso, de alguma forma, isso acontece.

Enquanto corporações estão empenhadas em reduções implacáveis, as demissões e cortes recaem naqueles que estão realmente produzindo, movendo, consertando e mantendo as coisas; através de uma estranha alquimia que ninguém sabe explicar exatamente o número de assalariados empurradores de papel parece crescer e mais e mais empregados encontram-se, não diferente dos antigos trabalhadores da União Soviética, em jornadas de 40 ou até mesmo 50 horas semanais sobre papeis, mas efetivamente trabalhando apenas 15 horas exatamente como Keynes previu, uma vez que o resto do tempo de trabalho é gasto organizando ou frequentando seminários motivacionais, atualizando perfis de Facebook ou fazendo downloads de box-sets de TV.

A resposta claramente não é econômica: é moral e política. A classe dominante percebeu que uma população feliz e produtiva com tempo livre disponível é um perigo mortal (pense no que começou a acontecer quando nos aproximamos disso nos anos 60). E, por outro lado, o sentimento de que o trabalho possui um valor moral em si mesmo e que qualquer um que não esteja disposto a se submeter a uma intensa disciplina de trabalho durante a maior parte de seu dia não merece nada é extremamente conveniente a eles.

Uma vez, enquanto contemplava o aparentemente infinito crescimento das responsabilidades administrativas nos departamentos acadêmicos ingleses, cheguei a uma possível visão do inferno. Inferno é uma reunião de indivíduos que estão passando a maior parte do tempo trabalhando em tarefas das quais não gostam e não são necessariamente bons as executando. Digamos que eles tenham sido contratados por serem ótimos marceneiros e então descobrem que se espera que eles passem boa parte do tempo fritando peixes. Essa função não precisa necessariamente ser feita - ou, ao menos, há apenas uma quantidade limitada de peixe que precisa ser frita. Mas, de alguma forma, todos eles passam a ficar ressentidos com o fato de que outros colegas podem estar passando mais tempo realmente trabalhando com marcenaria e não cumprindo as funções de fritar peixe, o que resulta em longas pilhas de peixes mal fritos ao longo da oficina e isso é tudo o que qualquer um faz.

Acredito que atualmente essa é uma descrição precisa da dinâmica moral da nossa própria economia.

Agora, percebo que qualquer argumento levará a objeções imediatas: "quem é você para dizer quais trabalhos são realmente 'necessários'? O que é necessário, afinal? Você é um professor de antropologia, qual a 'necessidade', disso?" (e de fato um monte de leitores de tabloides pode considerar a existência do meu trabalho como a exata definição de desperdício de despesas sociais). Em um nível, isso é obviamente verdade. Que não há uma medida objetiva de valor social.

Eu não me atreveria a dizer a alguém convicto de estar fazendo uma contribuição significativa para o mundo de que eles, na verdade, não o estão fazendo. Mas e em relação àqueles que estão convencidos de que seus trabalhos são sem sentido? Não muito tempo atrás voltei a ter contato com um amigo de escola com o qual não encontrava desde os 12 anos de idade. Estava assombrado por descobrir que nesse meio tempo ele se tornou primeiro um poeta, depois o líder de uma banda de indie rock. Havia escutado algumas de suas músicas no rádio sem saber que o vocalista era alguém que eu conhecia. Ele era, claramente, brilhante, inovador e seu trabalho inquestionavelmente melhorou as vidas de pessoas ao redor do mundo. Apesar disso, após alguns álbuns mal-sucedidos, ele perdeu seu contrato e atormentado pelas contas e uma filha recém-nascida, acabou, como ele disse, "escolhendo a opção padrão de muitas pessoas sem direção: a faculdade de direito". Agora ele é advogado corporativo de uma proeminente firma de Nova York. Ele foi o primeiro a admitir que seu trabalho era completamente sem sentido, contribuindo em nada para o mundo e, na sua própria opinião, sequer deveria existir.

Existem várias perguntas que alguém poderia fazer aqui, começando com o que isso diz sobre nossa sociedade além de que ela parece criar uma demanda limitada para talentosos poetas-músicos e uma demanda aparentemente infinita para especialistas em lei corporativa? (Resposta: se 1% da população controla a maior parte do dinheiro disponível, o que chamamos de "mercado" reflete o que eles consideram útil ou importante, não o que os outros pensam).

Porém, mais um vez, isso mostra que grande parte das pessoas nesses trabalhos estão conscientes disso. De fato, não tenho certeza se alguma vez encontrei algum advogado corporativo que não achasse que seu trabalho fosse uma besteira. O mesmo vale para quase todos os trabalhos que destaquei acima. Há toda uma classe de profissionais assalariados que, se você os encontrar em uma festa e o seu emprego for considerado interessante (um antropólogo, por exemplo), eles irão fugir completamente de qualquer conversa que envolva os trabalhos deles. Dê-lhes alguns drinks e eles estarão soltando tiradas sobre o quão estúpidos e sem sentido são seus trabalhos.

Há uma intensa violência psicológica aqui. Como alguém pode sequer começar a falar sobre dignidade no trabalho quando se pensa que o emprego do outro não deveria existir? Como isso pode não criar uma profunda sensação de raiva e ressentimento? No entanto, o gênio peculiar dos que comandam nossa sociedade descobriu uma maneira, como no caso dos fritadores de peixe, para garantir que a raiva seja dirigida precisamente contra aqueles que realmente fazem algum trabalho significativo. Por exemplo: em nossa sociedade parece haver uma regra geral que, quanto mais o trabalho de alguém traga benefícios aos outros, menos ele deve receber em troca. Mais uma vez, uma medida objetiva é difícil de encontrar, mas uma maneira fácil de chegar a um sentido é perguntar: o que aconteceria se toda esta classe de pessoas simplesmente desaparecesse? Diga o que quiser sobre enfermeiros, lixeiros ou mecânicos, mas é óbvio que se eles desaparecessem em uma nuvem de fumaça, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores ou trabalhadores de docas logo estaria em apuros e até mesmo um mundo sem escritores de ficção científica ou músicos de ska seria claramente um lugar pior. Não é totalmente claro como a humanidade sofreria se todos os CEOs, lobistas, relações públicas, atendentes de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais simplesmente desaparecessem da mesma forma (muitos suspeitam que o mundo poderia melhorar significativamente). No entanto, para além de um punhado de exceções entre os que ganham muito (como no caso dos médicos), a regra funciona surpreendentemente bem.

Ainda mais perverso, há um senso comum de que é assim que as coisas devam ser. Esse é um dos segredos do populismo de direita. Você pode ver isso quando os tabloides gritam contra os funcionários do metrô por entrarem em greve por melhores condições: o simples fato de os funcionários do metrô poderem paralisar Londres mostra o quanto o trabalho deles é necessário, mas isso parece ser exatamente o que incomoda as pessoas. Fica ainda mais claro nos EUA, onde os republicanos tiveram enorme sucesso em mobilizar rancor contra professores, funcionários das montadoras (e não contra os administradores das escolas ou gerentes das indústrias automotivas, que são quem realmente causa os problemas) por seus salários e benefícios inflados. É como se eles dissessem "vocês têm que ensinar as crianças! Ou fazer carros! Vocês têm que ter trabalhos de verdade! E acima de tudo vocês ainda têm a coragem de esperar ter pensões de classe média e planos de saúde?".

Se alguém tivesse desenhado um sistema de trabalho perfeitamente adequado à manutenção de poder do capital financeiro, é difícil ver como eles poderiam ter feito um trabalho melhor. Os verdadeiros trabalhadores produtivos são espremidos e explorados implacavelmente. O restante é dividido entre uma camada aterrorizada, insultada universalmente, desempregada, e uma parcela maior que basicamente é remunerada para fazer nada, em posições criadas para fazê-los se sentir identificados com as perspectivas e valores da classe dominante (gerentes, administradores etc) - e particularmente seus avatares financeiros - mas, ao mesmo tempo, fomentar um ressentimento latente contra qualquer um cujo trabalho tenha claro e inegável valor social. Claramente, o sistema nunca foi conscientemente construído. Ele emergiu ao longo de um século de tentativa e erro. Mas essa é a única explicação do porquê, apesar de nossas capacidades tecnológicas, não estamos trabalhando 3 ou 4 horas diárias.

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